quinta-feira, novembro 18, 2004

SOBRE O QUERER PROCESSAR - por que me causa horror o “querer processar” de quase todo mundo? não é porque fui, estou sendo ou porque serei processado por questões intelectuais, culturais: isso, independente do resultado, sempre me deu muito orgulho e prazer: o ser processado é um dos índices de diferenciação. e preciso saber melhor também o porquê do orgulho: as duas coisas, o horror e o orgulho estão unidos.

quem pensa em processar, quem deseja o processo, quem processa é o centro do meu horror. é um tipo que aceita o estado, a lei, a ordem; que respeita deus, pai e mãe; faz parte da família, da igreja, do bairro, da cidade, do país, da gramática, do hino, da bandeira; tem um time de futebol, uma festa, um programa de televisão; gosta de corrida de carros, de ler jornais, de jogar; tem orgulho da “história do seu país”; é um tipo que jamais se sente absolutamente deslocado, desfiliado; é pai (mas não aceita: coloca a “culpa” na “esposa”, no “acaso” quando ele é que é quem buscou isso porque esse é seu programa secreto, que ele não consegue manipular), é marido, é cidadão, é trabalhador, é um “ser vivo”; é um tipo que é um “ser humano” e se orgulha disso; são emotivos, violentos com mulheres, com homossexuais, com negros: essa violência aparece no seu gosto por piadas; um tipo que recorre ao “coletivo”, ao “grupo”, ao poder ordenado das “massas”, do “povo”, do “direito”; é um tipo que acredita piamente que é brasileiro e que fala português, respeitando “quem fala certo”, rindo e estranhando de “quem fala errado”; um tipo que não tem autonomia intelectual: precisa de mentores, de gurus, de lideres, de chefes, de companheiros e de amigos; um tipo que não criou suas condições culturais porque “estuda”, se “esforça”, “aprende”; um tipo que acredita que é “macho” ou “fêmea” e se ressente muito, sofre feito um porco no matadouro, quando “é bicha” (coisa que procura esconder até de si mesmo); um tipo que acredita na natureza, nas energias, na matéria, na ciência e na magia; acredita no espírito imortal, em extraterrestres e mistérios; que não está acima dos clones: precisa dos clones para pôr a sua vontade em andamento, os seus “direitos” em exercício. não se resolve sozinho, não dá valor à sua independência, ao seu não, a sua violência, a sua vingança, ao seu desprezo, a sua liberdade; um tipo que não se tornou alguém: não tem face, não tem nome, não tem vergonha: sua vida é cheia de ilusões que jamais conseguirá perceber como ilusões exatamente porque essas ilusões, para ele, são a realidade, os processos da vida, as formas da existência: seu programa social protege ele de toda negatividade, de toda dissolução.

sua linguagem, suas palavras, seus gestos, suas imagens são as do “povo”, das “massas”, das “classes médias”, do senso-comum; funciona por elaborados clichês, o que lhe dá a impressão de pensar, de modificar a si mesmo, aos outros e ao mundo. para isso usa palavras, imagens, frases, idéias e conceitos deslocados, aprendidos não para “atingir”, para negar, para dissolver, mas para se apresentar, para parecer, para não ser diminuído, para parecer mais.

faz parte do “lixo industrial” mas vivi e proclama o “lixo” com orgulho (será sempre um ressentido por ser “lixo industrial”, por viver nas periferias, nos subúrbios, nas fronteiras: não pode compreender jamais que não há “metrópoles” ou “colônias”, primeiros, segundos e terceiros mundos a não ser para os “lixos industriais”). cria seus filhotes conforme o “espírito social”, vetando ao infeliz qualquer possibilidade de se modificar, de não reproduzir o mesmo mundo medíocre do “papai” ou da “mamãe”, que vai batizar ele, que vai levar ele à “primeira comunhão” e a todos os passos religiosos mesmo dizendo que não acredita (não acreditar faz parte dos seus clichês, mas se borra todo da morte e reza escondido à “papai do céu” e à “santa virgem maria”). seguirá os mesmos passos das matrizes, seja “educado” nas mesmas escolas, respeitando os mestres, brincando de futebol ou com bonecas. acreditará sempre que sua vida foi feita para trabalhar e parir, para comer e se vestir, para acreditar em pátria, em deus e para consumir até estourar. acreditará sempre na justiça, no povo e que tem uma “alma imortal”. respeitará sempre o “senhor” em todas as suas formas reais e imaginárias. seu pensamento, suas ações, sua vida inteira é uma extensão perversa do “senhor”, em honra do “senhor”.

tudo isso é o estofo vivo, vivíssimo, do “querer processar”: sem todas essas crenças ele não sentiria com tanta premência seus direitos sendo desrespeitados: sem as crenças anteriores ele não se poria “contra ninguém”: a lei é sua instância superior de negociação: quando ele se torna impotente, quando falha suas micro-negociações (aquelas advindas da escravidão e dos agregados, dos pobres e de todas as formas de “lixo industrial”) ele recorre à justiça: ele é um “cidadão que merece respeito”, que “respeita e por isso quer respeito”.

as razões da existência da lei, do estado, do povo, sua condição de cidadão (a mesma de servo, de escravo, de trabalhador, de abelha e formiga), ele até “acha bonito”, mas para ele é “teoria”. ele aceita se misturar, ser “igual”, parecer, fazer aparecer, sobreaparecer sua condição de igual, de cidadão: enquanto não exalta sua condição de igual a todos não descansa, enquanto não reequilibra o desequilíbrio provocado pela “injustiça” ele não descansa, não fica quieto.

quando esse tipo é somente cidadão é profundamente compreensível sua imbecilidade dócil (assim determinado “mundo do capital” tem se produzido e reproduzido pelo menos nesses dois últimos séculos). o problema se dá quando ele se torna “aluno de uma universidade”, quando vai estudar nos “cursos de ciências humanas”. a pressuposição é a de que seja alguém que já tenha tomado um curso “contra o mundo”, que deseje quebrar os programas sociais com sua consciência e sua atuação. mas o que temos numa maioria esmagadora é exatamente o contrário: são tipos que atravessaram seu tempo de universidade para lutar contra ela, contra as possibilidades críticas e filosóficas, para se reafirmarem repondo o que já sabem e o que sabem seus iguais. fará tudo sempre para confirmar “o mesmo”, aquilo que ele já sabe, que todos sabem, que ele acredita, que todos acreditam. mas com uma diferença: a estupidez será acrescida por novas palavras, novas imagens, novos conceitos (todos esvaziados, todos sem profundidade, todos purificados e reencaminhados para o comum dos sensos, para a respeitabilidade). e o jegue, com um “título acadêmico”, ganhará um sobrerespeito (todos a sua volta respeitam ele), um lugar de destaque entre os demais jegues: dele provém a “confirmação científica”, “acadêmica”, “filosófica”, de toda tolice, de todo mistério, de todo segredo, de todas as microcrenças: ele acreditando em quase tudo confirma, reafirma num “patamar superior” (linguagem unidimensional) todas as sandices comunitárias, todas as covardias e todos os aleijões. por isso não consegue realmente se pôr em diálogo e nem se expor: ele só consegue se ouvir, mas diz que é o outro que não consegue ouvir ele: como o outro estando em processo de diálogo está levando ele para onde ele não se sente seguro, sua reação pode ser violenta ou se calar com profundo ressentimento do outro (ele jamais é culpado de nada, ou totalmente culpado de tudo: ou é adão antes da queda, ou é adão depois da queda: seu mundo é “ou-ou”). nunca estudou profundamente nada: fala por opinião, por achar que é assim, por uma orelha de livro, um artigo de jornal, uma conversa: jamais se aventurou no conhecimento, no desvendamento tenso de algo: é sempre um pinto no galinheiro se fazendo de galo: mas como nesse imenso galinheiro só tem pinto, nenhum galo lhe dará um belo sopapo, e quando encontra um galo ou a pata de um elefante pela frente, todos são contra o elefante e contra o galo, nunca contra o orgulho besta e vazio do pinto.

sua atuação será uma traição às possibilidades que possui, mas não põe em questão, não se dispõe a expor, a se indispor: não consegue ser fraco: precisa do estado, da polícia, do exército para reequilibrar sua imediata saída do conforto entre os iguais. e a possibilidade de se transformar num intelectual, num revolucionário, se tornando alguém, desaparece, é desperdiçada. sua vida será uma constante resistência aos intelectuais, aos que resistem, aos revolucionários, a toda mudança significativa. sua atuação, mesmo parecendo a de um “intelectual orgânico”, será anti-intelectual (ele e os iguais a ele sempre desconfiaram da teoria em seu sentido pleno de práxis e de poiesis: não podem mais ultrapassar o senso-comum e a vida intelectualmente vegetativa).

a posição política de “quem processa” também é um dado a mais na questão. mesmo sendo algo difundido pelos “labirintos sociais” (todas as estúpidas classes fazem parte da mesma mentalidade, do mesmo imaginário esvaziador e integrado), há tipos em suas determinadas posições de classe que estão mais “propensos a processar”: os “servidores” (“classes médias”) e as extensões imaginárias dos servidores. sua luta se faz sempre com o estado, acreditando no estado, tendo ao seu lado o estado e, ao estar contra, ele luta para que o estado “volte a estar ao seu lado”: o estado é sua família. sem o formigueiro ele definha, sem as crenças do formigueiro ele fica completamente perdido. sua posição política é sempre de reação, sempre fascista, sempre de retomada da ordem, da produção, da família e de tudo que recoloca a “sociedade de consumo” nos seus trilhos: seu lugar é o de defesa: só ataca para fazer voltar uma situação anterior: o processador é um inconformado com o irreversível da mudança, o radical do tempo. ele já foi “servo”, já foi “escravo”, já foi “povo”, já foi “massa”, hoje é cardume; já foi “feirante”, “comerciante”, “traficante”, “burguês”, “migrante” e “retirante”, hoje é cidadão; já foi “advogado”, “professor”, “funcionário público”, hoje é “classe média”; já foi o que matou o revolucionário, quem torturou os presos, quem dedou, delatou, indicou; já foi monarquista, republicano, liberal, fascista, da arena e do mdb, hoje é indiferente ou do “partido dos trabalhadores”: não foi jamais don quixote ou sancho pança: foi bentinho e capitu, helena e dona plácida.

esse tipo, que fizemos se desdobrar parcialmente aqui, é o homo juridicus, o “imbecil coletivo”, o homo obvius, o integrado, o violento elemento clonizado do fascismo atual. é o oposto tanto do antigo revolucionário e do intelectual quanto do terrorista e do querrilheiro. ele é a corporificação não somente dos imaginários do senso comum como a expressão animalizada do estado, do capital e da “sociedade” como um formigueiro “montado” para produzir e se reproduzir, mas aparece sempre com uma face, um nome, uma história: todos falsos. o homo juridicus é a confiança no estado, nas leis, na nação (são sempre subfilhotes de hitler, de mussolini e do pequeno e ridículo ditador vargas): ele “busca seus direitos” em todas as manifestações sociais: sua função é confirmar. isso é um dos complementos fundamentais da “sociedade de consumo”. sem o homo juridicus não pode existir o homo econômicos, o homo politicus, o homo fascistas e o homo estupidus (da sub-espécie babacas babacas). ele não sabe separar o eu-quero (a necessidade instaurada como natureza, não enquanto dimensão própria do capital), do eu-tenho-direito (esfera de defesa econômica, política e de classe): ao se “defender” auxilia e protege o “sistema”, consolida o senso-comum.

o processador não é um “fraco”, um “oprimido”, mas um negociador frustrado: sua vontade de escravo, de agregado, de funcionário público, de consumidor não foi satisfeita. o que ele busca é o equilíbrio, a ordem: as condições do estado e da produção: por isso ele fica tão convulsionado, tão indignado, tão melindrado, tão assanhado, tão revoltado e “doente”: ele só é, só se torna, só pretende, só alcança a existência, o sentido, a forma, o desejo e a alegria através do respeito, da imitação dessas “instâncias superiores”: ele é um filhote do capital, da “sociedade civil”, do estado e da “sociedade de consumo” (que não pode existir plenamente sem todos os direitos, contratos e funções): atingido, contestado, dissolvido, ameaçado seu mundo (pessoal e coletivo: economia e política) precisa voltar ao normal, retornar ao “ser natural”, à toca protetora do estado (quem protege ele quando ameaçado: o servo - agora cidadão - ainda acredita nos sacerdotes como intermediadores de um deus qualquer; nos guerreiros - milicos, policiais e o judiciário - como protetores da comunidade; e dos trabalhadores como aqueles que pagam com seu trabalho pela proteção e pela intermediação). pessoalmente ele não faz nada: sem a lei, sem o estado, sem o patrão, sem o senhor e suas sombras protetoras, ele não reinvidica, não diz não, não contradiz, não critica ou dissolve. o homo juridicus é o indivíduo apascentado, cozido dentro do homo economicus: ele não escreve sua própria história.

meu orgulho, uma das questões deste texto, advém de eu não querer, não fazer parte, não ser nada disso, estar sempre muito longe de tudo, contra tudo e por nada: e haver lutado sempre contra tudo isso e muito mais: o ser processado é para mim um dos índices dessa diferença, da vitória da diferença, a confirmação: e eu habito plenamente o não, a ausência, o não ser, a revolta, o não-lugar: estar ou fazer parte faz parte da luta, do ser contra, jamais uma integração não-dita ou inconsciente, jamais um compartilhar, um se integrar; o horror está em viver e conviver com esse universo castrador, centrífugo, unidimensional, cristão, homofóbico, racista, nazista, medíocre e verde-amarelo: por mais que faça, que lute, que desdiga, tudo permanece ao meu redor, querendo me sufocar, penetrar como um estuprador ensandecido deseja sua vítima, querendo que eu seja assim também, que comungue, que partilhe, que aceite, que confirme que faço parte, que proclame que necessariamente faço parte, que não posso não fazer parte, que feche os olhos, que respeite, que me torne igual e que processe os que atinjam minha “pobre alma desarmada”. e o horror e o orgulho não se separam, não desaparecem. eu adoro ser processado e, quem sabe, torturado ou assassinado. seria a glória! mas eu não mereço tanto!
Alberto Lins Caldas

1 Comments:

At 11:04 AM, Blogger Hélio Dantas said...

este texto ficou de tirar o fôlego... pelo menos para mim...

 

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