sábado, janeiro 01, 2005

TUDO DIZER
um e-mail me pergunta sobre a palavra parrhesia [pan= tudo/rima= dizer, o que é dito, o “tudo dizer”: “falar sem obstáculos”, fala franca, simples, direta, a “livre palavra”; liberdade e franqueza que transcendem as normas e leva a um “mais além” dialógico; o enfrentamento, “fala não farisáica”, “orgulho da língua livre”, a “fala sem amarras” dos “homens livres”; no catecismo católico quer dizer “simplicidade sem rodeios”, “confiança filial”, “jovial segurança”, “audácia humilde”, “certeza de ser amado”, coragem, confiança; faz parte das múltiplas manifestações da graça: relação com deus e com os homens, antecipação da salvação como alegria e humor, discernimento e coragem (a parrhesia propriamente), os dons do espírito santo; “liberdade de tomar a palavra” ou seja, na “assembléia do povo”, falar francamente] e parresiata (aquele que considero o legítimo filósofo), aquele que diz tudo, o que tem a coragem da verdade, usados no meu texto “liberdade de expressão”, e eu respondo: a parrhesia era dimensão da coragem, daqueles que, por não serem senhores, diziam a verdade, se davam ao direito de tudo dizerem até mesmo com sua vida, com o risco da vida, que era a garantia da verdade, que jorrava do seu exemplo, das suas escolhas vitais: dizer a verdade era conseqüência da vida em busca da verdade. a crença na verdade e a busca pela verdade era o mesmo que a verdade, a verdade como uma garantia vital, uma crença feita com a vida, como sócrates. ele dizia, através de platão (“a república”), que a “parrhesia é a causa de minha impopularidade”, e vivia e morreu em conformidade com a parrhesia tornando ela a própria filosofia não somente como um dizer sobre o ser mais um dizer que tem a coragem de dizer, de se dizer ao dizer o mundo e os outros.
na minha primeira juventude, quando comecei a ler filosofia em busca das minhas buscas, encontrei como todo leitor os livros de platão e seu personagem principal. com sua vida e morte o sentido das buscas se resumiram e se consolidaram numa só, que viria a chamar literatura em seu sentido estrito e afiado. sócrates vivia conforme, seu dizer e sua vida eram com aquela forma onde uma supõe a outra, sem as contradicções tradicionais. a verdade e a vida estavam na vida como exemplo integral. o seu “quem sou?”, “ao que me conformo?”, “que estou aceitando?”, “sou cúmplice do que?”, “como me libertar mais ainda?”, “sou condescendente?”, “que devo fazer nessa cidade e com os costumes dessa cidade”, “dizendo isso serei amado ou ser amado é sem importância diante da verdade?”, “como libertar o outro das suas ilusões?”: crítica e autocrítica juntos, escolhas fundamentais. a verdade e o dizer a sua verdade sobre a corrente, apesar da corrente, arriscando a vida, a paz, os amigos e amores, a segurança e o respeito: a parrhesia exige isso, o risco em fazer a verdade se identificar com o risco vital: o parresiata é um toureiro e sua arte exige o risco de vida para ser exercida: sem o touro a tauromaquia seria somente uma dança.
a parrhesia continua a ser fundamento para qualquer teoria, qualquer dis-curso que deseje dizer o mundo ao mesmo tempo que aquele que diz, aquele que assume o dizer. e dizer a verdade é também dizer o falador e dizer todos em torno desse dizer e desse falador. a liberdade de expressão se torna cada vez mais uma espécie de “ultimo bastião” da liberdade social na onipresença da mercadoria. num mundo tal devemos e temos a obrigação ética de “interpelar” tudo e a todos sem amarras, sem medo das conseqüências, sobre o que fazem governos e o que dizem, o que permitem e o que proíbem, o que cercam e o que abrem, sobre o sentido de cada crença e cada palavra e cada ameaça travestida de “bons costumes”, interpelar a lei e os “senhores da lei”, interpelar os crentes e suas crenças, os “inocentes” e os “culpados”, as economias e as políticas (inquirir táticas e estratégias), interpelar o corpo e suas técnicas, as mídias e suas loucuras servis, interpelar as ações e as inações, as decisões, interpelar os saberes, as imagens, as experiências, o senso comum e as filosofias, o desejo e o gozo: somente assim posso começar a ser um “cidadão”: sem essa interpelação furiosa a cidadania é somente um apêndice dos poderes e do poder, daquilo que é exatamente contra a existência do cidadão e de toda possibilidade real de democracia (sem a parrhesia a própria lei é um simulacro): a parrhesia é “perguntar sobre a verdade”, é clamar por ela quando se encontra tão travestida de realidade, de natureza, de crenças, de poderes e de saberes que ela mesma e todos nós já não nos sabemos senão o que o mundo do formigueiro deseja que percebamos: a parrhesia é quebrar esse espelho cruel.
sem a parrhesia a sociedade não conquista a cidadania e a universidade sua existência. só há cidadania se há parrhesia e sem ela a universidade é somente “instituição de ensino”, estribaria da reprodução dos saberes técnicos para servir aos mecanismos alienantes do trabalho: lugar de reciclagem, de lixo reutilizável. daí porque a parrhesia é atingida tanto na cidade quanto na universidade: sua inexistência, o vazio que deixa, o combate constante a sua prerrogativas diz muito tanto da cidade quanto da universidade (diz muito deste horror maligno chamado brasil).
só uma sociedade sorrateiramente autoritária, que confunde lei e ordem com democracia; onde a mercadoria é intocável em sua forma de existência, pode ser contra a “liberdade de expressão” (considerada aqui aquela que vai além da permissão, além da lei, além do respeito, além do poder, além do costume e da individualidade intocável como “sujeito de contrato”). dizer contra a ordem, contra a norma, contra a forma porque essas são “palavras de ordem” militar, não pleno exercício de democracia ou liberdade. a grande razão do filósofo não é dizer o ser, não é lutar pela verdade (que muda o tempo inteiro ao sabor de todas as ondas), mas pelo dizer a verdade com a coragem e o risco da vida, a coragem de lutar pela liberdade de dizer a verdade.
alberto lins caldas