sexta-feira, dezembro 24, 2010

HISTÓRIA E LITERATURA: IMPASSE BRASILEIRO

“A reverência diante da autoridade é inata em vocês, continuará a ser incutida durante a vida toda das formas mais variadas e por todos os lados; até vocês ajudam nisso como podem. (...) é um respeito que vai pela via torta (...) Respeito no lugar errado, que rebaixa seu objeto.”
O Castelo
Franz Kafka
 
História

        A História é um discurso religioso por excelência, básico discurso do capital em seu formato capitalista, disciplinamento das atividades e relações apresentadas enquanto ritmo, tempo, ex-pressão viva do disciplinamento ritualizado das produções. Sendo assim a História é resultante e produtora dos poderes hierárquicos, funcionalizadores dos ritmos corporais: um tipo de corpo cria a História (o corpo-servo-das-cortes, o corpo-servo-dos-mercadores, o corpo-servo-dos-letrados, o corpo-servo-dos-funcionários-do-estado) e a História cria um tipo de corpo (o corpo-cidadão, o corpo-trabalhador, o corpo-dócil, o corpo-consumista, o corpo-despolitizado).

        A função básica da História é produzir cortinas de fumaça, ofuscamentos, sobre a máquina tribal (isso que chamamos “ocidentalidade”, “cristandade”, os “rebanhos do senhor”, enfim, a “nossa tribo” que a tudo incorporou chamando de seu), escondendo que aquilo que seria tempo não é uma “dimensão do passado”, que nada “está” no passado, nada “aconteceu”, que as explorações, que o horror, não está no passado, essa ficção despolitizada, essa zona morta de todas as metafísicas, mas que o horror está, sempre, no imediato: que toda politicidade é dimensão imediata de atividades, não rememorar reacionário, reativo, passivo: nada mais doente, adoecedor, ressentido que a memória. E ressentido precisamente porque somos nós, os historiadores, os professores de história, que produzimos “passados” e “memórias” enquanto “coisas”, enquanto “acontecimentos”, “existências”, “materialidades”, todos nós inocentemente esquecidos dos nossos papéis de manufatureiros dos ocultamentos das politicidades. Nós e todos as formas de sacerdotes, como os marxistas, os anarquistas, os cristãos, os políticos, os nazistas em geral. Todos trabalhando para um “Estado”, um “estado de coisas”, como se nossa função fosse “dizer a verdade”, “expor o que realmente aconteceu” e não esconder de nós mesmos e de todos - os sentidos das nossas operações de ofuscamento.

        A função-missão da História é despolitizar o imediato (único lócus da politicidade), esvaziá-lo de intensidades, de potência, de forças, de relações perigosas, tornando ele apenas o lugar dos fluxos fixos de informação, o lugar das mídias, das atividades pedagógicas do que aconteceu e jamais acontecerá novamente (então para que?), a resultante esvaziada dum longo chegar que não chega, campos mornos de trabalho, entorpecimento dos dias.

        As pretensas imensas e extensas redes temporais que seriam o passado, estendidas todas antes do imediato, se abrem cada vez mais e mais “longe”, cada vez mais apenas “interpretações de um modelo ideal”, existente apenas no céu dos historiadores e na imobilidade anestesiada das mandas integradas e mansas, afastando a politicidade das suas ações, o corpo das suas atividades, das suas possibilidades de consciência e tomada das suas melhores forças: a História é essa estratégia de nunca chegar ao agora. No agora, ela gagueja, titubeia, balbucia, se remete à mídia, a opinião, ao senso comum, ao conhecimento dito científico, e morre antes de chegar ao agora e jamais consegue ligação alguma entre o “antes” imaginário, construído inteiramente por nós, com o imediato vivo que exige ação e é ação, atividades que criam e reproduzem o existente a cada segundo: precisamos dar conta dos ritmos desses imediatos produzidos por nós, isso a história não pode fazer.

        Para a História a única realidade são as cinzas e os historiadores, e todos os produtores e reprodutores das funções estatais do conhecimento, do saber, da beleza, não passam de cães de guarda da máquina tribal, ou do Estado, das igrejas, das pedagogias ortopédicas e das propriedades. Fora desse protecionismo, nem a História nem nenhuma Ciência, consegue justificar sua existência, ideologia das produções, das despolitizações, dos disciplinamentos. Há muito tempo não conseguimos viver fora disso que chamam História: já somos obedientes demais para ousar viver fora do tempo, viver contra o tempo, nos contrapelos da ação dos imediatos como se o tempo existisse fora das nossas mais vivas e cruas atividades, relações, triangulações.

História do Brasil

        De pelo menos Von Martius e Francisco Adolfo de Varnhagen (o visconde de Porto Seguro), com sua “História Geral do Brasil”, onde se revela nitidamente uma narrativa que estabelece a identidade do “povo brasileiro” e do brasil-estado,  assim como a Literatura brasileira, nascem como projetos imperiais em pleno século dezenove, vindo de forças estatais, latifundiárias e mercantis, loucas por “identidade”, “limites”, “origens”, “dignidades”, “enobrecimentos”, “apoio”, “ordem”, “leis”, crenças de união para as manadas se tornarem uma só, o “povo brasileiro”, “o brasil”, o “estado nacional”, torcendo todas as multiplicidades num “fluxo temporal único”, com uma origem, com razões, sentidos e produzido eternamente para chegar ao sempre atual - “brasil grande”, essa coisa patética que sempre aparece seja em campeonatos mundiais de futebol, seja em momentos de troca de emprego de políticos.

        Projetos imperiais e republicanos, projetos do capital e dos imperialismos, íntimos projetos coloniais, projetos que a obra de mentecaptos sabidos como José de Alencar, senhor de escravos e terras, senador do império, sintetiza bem ao fazer parte das construções identitárias tanto da escrita da História quanto da escrita literária: ela cria e recria e põe forças na nação, nos limites da-nação, nos costumes da-nação, na Língua de oligarcas e de padres da-nação, construindo suas mais “profundas” identidades, aquilo que faria a união dos brasileiros (um povo, uma lingua, uma terra, um poder que possui a capacidade de torcer as multiplicidades e as diferenças numa unidade dócil), o que criaria isso que é o próprio brasileiro, uma mistura bem dosada de escravo imbecilizado, classes médias estúpidas, agregados sabichões de fazendas, engenhos e “casas de família”, funcionários públicos subservientes, miseráveis de todos os tipos, migrantes estarrecidos, famélicos e desprotegidos, enfim, um tipo balzaquiano dos mais desprezíveis e impotentes a tudo que seja grande e absolutamente capaz de toda docilidade funcional, aquele que se horroriza com qualquer idéia que não seja a da sua normalidade e da “paz de espírito”, tudo que foge ao calorzinho dos rebanhos, aquele que foge horrorizado de todas as formas de singularidade e quando podem assassinam, delatam, se calam diante do horror.

        O brasil é uma criação violenta não apenas de “forças produtivas”, de “modos de produção”, de colônias e repúblicas, de governos, de militares imbecis e advogados sempre ignorantes e sabichões, mas tudo isso é assado, cozido, frito no fogo brando e perverso dos saberes, da “Literatura brasileira” e da “História do Brasil”, seus principais cozinheiros. Enquanto uns preparam, protegem, estabelecem a Língua, os outros inventam e guardam uma História por eles mesmos escrita e mantida a fogo e ferro em escolas, mídias, cotidianos coisificados, e sem saída, porque as possíveis “vitimas” desejam tudo, menos deixarem de ser “brasileiros”, de perderem o “brasil”, a jaula e a classificação de zoológico inventada para eles e por eles mesmos. Pois não se enganem: as pretensas “vitimas” são exatamente as que mais desejam a servidão, a famosa “servidão voluntária”. A libertação de tal situação em redes, a fuga desse horror é impossível exatamente porque os “dominados” sempre foram os “dominantes”: são eles que criam, sustentam, protegem, lambem e se alimentam de Deus, do Estado, do Brasil, da Política, da História, da Família, da Propriedade: são precisamente eles que sempre foram a grande base de todas as ditaduras, oligarquias, nazismos, religiões, torturas, normoses: nunca foram “vítimas”: e os “dominantes” (sejam aristocratas, burgueses, políticos ou qualquer dessas deformações sinistras e parasíticas) não passam de formas de “dominados” exercendo suas funções no horror. Por isso não há “teorias libertadoras”, exatamente porque não há ninguém a ser libertado, iluminado, conscientizado, levado ao paraíso seja de cristãos, de marxistas, de democratas, de liberais, de anarquistas ou qualquer outra forma degenerada de religião.

        A transformação da escrita de uma “História literária” numa “História científica”, se é que isso aconteceu ou pode acontecer, não mudou a função subserviente da Historiografia brasileira, isto é, não desfez o trabalho da construção imaginária de um tempo estatal, nacional, não instaurou uma crítica dissolutiva, aquela que acompanhasse a genealogia da instauração desse tempo dominador servindo tão somente a consolidar identidades, despolitizar os imediatos, se tornar pedagogia apascentadora de manadas famintas por estabilidade e segurança. Precisando dum mundo imóvel, consolidado, de uma interioridade protegida por papai do céu e papai da terra, por patrões e sacerdotes, por deus e pelo estado, mediado pela família, isto é, não há diferença essencial entre Von Martius, Francisco Adolfo de Varnhagen, Capistrano de Abreu e José Honório Rodrigues, Emília Viotti, Fernando Novais, Boris Fausto Evaldo Cabral, José Murilo de Carvalho, - entre Gilberto Freyre (que daria tudo para ser visconde de qualquer coisa) e Jacob Gorender.

        A historiografia brasileira não é mais que uma pedagogia da imobilidade e das territorializações. Nela, tudo aconteceu, e continuará acontecido. Deus, o Estado e a família agradecem.

Literatura Brasileira

        Temos a impressão que a Literatura sempre existiu. E tome Literatura egípcia, Literatura Persa, Literatura grega, Literatura Chinesa, Literatura medieval, Literatura asteca, Literatura sumeriana, Literatura Xavante.

        Escrever histórias, lendas, fábulas, mitos, poemas não é escrever Literatura. O que chamam Literatura é coisa muito mais danosa, lesiva, evasiva e hidrofóbica (teme o que flui, o que jorra, teme os devires, as desterritorializações): é uma mercadoria, que nasce sendo vendida, sendo feita para vender, para circular num mercado sendo transformada em dinheiro. Sem dinheiro, sem o estímulo do dinheiro, sem mercado, sem compradores, sem capitalismo, não há Literatura.

        Shakespeare não escrevia para o deleite de uns poucos escolhidos, mas para produzir dividendos, recolher dinheiro de espectadores e, no fim da vida, uns trocados pela venda de suas peças em livro, mas era o oposto do espírito de severidade do seu ao redor, fazendo fluir, também, as forças, as multiplas potências e intencidades que escapavam ao seu “pequeno mundo”. Cervantes não escrevia para seu prazer íntimo, solitário e para uns escolhidos, mas para um mercado ávido de leitores e ele, ansioso por respeitabilidade, por reconhecimento, morreu na miséria sonhando, como seu Quixote, dignidades e dividendos, mas era um mundo dentro de outro mundo, absolutamente o contrário da severidade inquisitorial da Espanha dos muitos letrados parasitas: uma coisa é o escritor, outra a literatura que ele ousa fazer ou não. Ele pode ser um parasita, mas sua Literatura pode ser o inverso dele, enquanto ele imobiliza o mundo com sua falta de caráter, sua literatura, surfa.

        Goethe não escrevia para aprimorar sua compreensão do mundo, mas para brilhar nas cortes e receber em troca poder, dinheiro e prestígio, forças bem concretas que ele aproveitou a vida inteira, mas sempre aberto a algo bem maior que os sonhos nacionalistas. Também ele desterritorializava, abria portas, criava links, surfava nos devires.

        Balzac e Dostoievski vendiam criteriosamente cada capitulo dos seus livros para os jornais e cada vez mais por mais dinheiro, e só escreviam por dinheiro, mas nem por isso deixavam de abrir aquilo que, na Literatura, permite e faz fluir o imóvel, o estável, o aceitável. De dentro da Língua nasce os surfares que desfere contra a Língua um ferão mortal. Isso “nós, os brasileiros”, não fazemos, nunca fizemos, apenas mentimos, escondemos, burlamos, pondo a culpa na Língua, na “falta de poder político”.

        “Nosso problema” não está na Língua, numa pretença falta de conhecimento mundial da Língua ou falta de poderes políticos e econômicos, mas na falta de coragem dos letrados de todos os tipos, nas suas atuações letradas servirem tão somente para manter e solidificar as despolitizações dos imediatos, tão conhecidas dos historiadores.

        Os livros de besteseleres e Paulo Coelho não são exceções na Literatura brasileira, mas a norma, o código, a forma, a razão, o desejo, o sentido, os procedimentos (sempre oligárquicos) girando em torno de prestígio e dinheiro, mas nem em Paulo Coelho, nem em Machado de Assis, nem em Graciliano Ramos, em Guimarães Rosa ou Clarisse Lispector, ou Carlos Drummond de Andrade e Castro Alves se foi além de serem funcionários da Língua, servos do Brasil, e suas obras não são mais do que “documentos da barbárie”, isto é, aquilo que chamam de Literatura brasileira é tudo, menos uma literatura, antes uma escritura falsa, sustentando uma ordem muito bem construída e mantida, um suporte do “estado nacional” e do “povo brasileiro e seus costumes”.

        Isso é a Literatura brasileira: aquilo, ou aquela escrita que não enfrenta e não expõe o horror, que se despolitiza no nascedouro porque precisa vender, precisa agradar, precisa alisar sem morder, ou morder delicadamente, respeitosamente, precisa cumprir sua função produtora, reprodutora, capacho, mimética, funcionária. Fora dessas funções a Literatura brasileira escorrega sem sentido. Pode até ser agradável para fazer passar certo tempo, mas não vai mais longe, e nunca foi.

        A chamada “Literatura brasileira” é a da Língua domesticada, Língua doméstica, Língua domesticadora; Língua da-nação, Língua do estado, Língua de deus, Língua de sacerdotes, Língua de letrados, Língua de professores de português e gramática e sintaxe, Língua de sabatinadores; Língua dos filhos dos senhores de engenho, dos senhores do mercado, dos senhores das terras, dos senhores do comercio, Língua comerciante, Língua industrial, Língua latifundiária, Língua da terra; Línguas das sinhazinhas casadoiras, Língua de advogados, Língua da lei, Língua dos leitores-estudantes-filhos-de-papai; Língua das igrejas, Língua das salas-de-jantar, Língua das salas-de-aula, Língua dos shopingcenteres, Língua das mídias, Língua respeitável; Língua territorializada, encapsulada, Língua contra os devires; Língua dos corpos dóceis, imbecis, tolos e sabidos dos leitores: literatura integradora do projeto nacional.

        A Literatura brasileira é uma estrutura panóptica (um lócus de inspeção, uma sela bem guardada, um lugar do estado, do senhor e das senhoras, um lugar que permite ver a nós mesmos enquanto manada já produzida, comesticada), estrutura imperial e republicana, que vai e vem, pelo menos, de Macedo á Marçal realizando exemplarmente sua função estatal, nacionalizadora, mercantil, institucionalizadora, mantenedora das identidades da-nação.

        Seja Macedo vendendo seus livros em tabuleiros levados por escravos ou Marçal vendendo seus livros nas melhores editoras sendo logo transformados em filmes, o conteúdo é sempre o mesmo: bairrismos, localismos, nacionalismos, regionalismos escondidos, se apresentando como grandes obras. Basta ver o insosso, medroso e minúsculo Machado de Assis, que infelizmente produziu uma Literatura minúscula, medrosa e insossa, que nunca passou de um escritor-funcionário e, exatamente por isso, conseguiu tornar suas obras o eixo dessa Literatura de terceira categoria, Literatura que nem consegue extrapolar seu território exatamente porque é escrita territorial, escritura falsa, documento, textos de servidores; ou Guimarães Rosa travestindo o mais chulo regionalismo em jogos de palavras para esconder exatamente seu inescapável regionalismo, que todos chamam universalismo precisamente porque assim se esconde sua pequenez grotesca, sua servilidade pessoal diante das ditaduras brasileiras e sua posição diante da lei; Graciliano Ramos, servindo a “ditadura do estado novo” de dentro e caladinho, e sua escrita imobilizadora da terra, expondo um viver imóvel, sempre territorializado, respeitoso da Língua do senhor, sempre seco e austero como deve se comportar um letrado consciente do seu kafkiano lugar, um sacerdote de stalin, da família e do brasil; ou “nossos poetas”, como Carlos Drummond de Andrade, chefe de gabinete de Gustavo Capanema, ministro da “ditadura do estado novo”, que a única coisa que fez na vida, assim como todos os poetas portugueses e brasileiros, foi escrever “crônicas poéticas”, que são travestis de poemas, escritura medrosa de serviçal escrevendo bonito enquanto trabalha nas ditaduras dos “campos de trabalho e reprodução” que chamam de país: nossos poetas são funcionários públicos não para se sustentarem, mas são poetas porque gozam antes duma posição e dessa posição conquistam sua vida e seu lugar “mais nobre” nas letras: nada neles faz fluir, desterritorializa, enfrenta ou expõe o horror, tudo neles é retórica, crônica camuflada, texto que pode ser lido por todos, artigos de jornal. Todos eles “escrevem bem”. Por isso nenhum deles jamais fez literatura.

O centro da Questão

        Toda essa seqüência de funcionários servis da Língua, do Estado, que se autodenominam escritores, mas que na verdade são escrivães, prestam um valioso serviço ao fazerem crer, crendo também, que “expressam a realidade”, que “representam seu tempo”. E assim se unem ao historiador nos nobres e grandes papeis de criadores, salvadores e mantenedores da pátria e sua ordem.

        O realismo, que atravessa toda a Literatura brasileira até quando mente que é outra coisa, é uma espécie de crença no escrito que escapa para as “linhas do mundo”, e “ler o real”, escrever o real, se torna o próprio real numa inversão judaico-cristã: o monstro é enfrentado apenas no espelho; o senhor é burlado, invertido e vencido apenas no sonho, no teatral, no ódio impotente e medroso: a letra é o mundo, a palavra do senhor é a verdade, a casa do senhor é sagrada, os delírios do senhor é o real, a lógica do senhor deve ser protegida assim como protejo a mim e a tudo que é meu: sou o senhor: escrevendo simulo que combato dragões, malfeitos e malfeitores: o senhor se esconde nos realismos, na defesa dos mais íntimos valores burgueses e cristãos, como a igualdade, a liberdade, a fraternidade, e outras virtudes teologais.

        Os “povos do livro” se congregando aos torpores interesseiros que protegem o poder e os poderes, reverenciam o escrito como se fosse ele o próprio real; como se fosse expressão do falado, do pensado, do rezado, do sonhado, dos imediatos; e com essa associação mágica, xamãnica, animista, o escrito passa a fazer parte da rede simbólica, virtual, lingüística, carnal, que torna o real real numa sobre-reificação escondendo não somente o caráter de signo, de “entes de imaginação” que são os próprios “critérios histórico-sociais”, mas que, partindo da subjetividade, cria a atmosfera e o campo objetivo, articulado, lógico, indo se agregar aos conhecimentos e percepções como se proviesse do próprio viver (a “aura mágica da letra escrita”).

        Nem o literário, ou o historiográfico, “representa o real” nem o “real projeta o literário”: os realismos dizem muito pouco do viver e muito das “ideologias” e das visões de mundo (devidamente naturalizadas e universalizadas) de determinadas redes vivas de repetição e vivência: o real não se reproduz a não ser enquanto impotente imaginação: o real são idéias, não aquilo que, por essas idéias, sentimos-pensamos como real: o caso dos realismos e das escrituras de “classe média” servem unicamente como documento, cartografias turísticas, não enquanto literatura precisamente porque esconde de si no seu bordado não apenas a feitura, a su-posição do olhar, mas que o que aparece não é o real (um real-mesmo jamais poderia aparecer, poderia ser posto em palavras: isso seria truísmo se não fosse tolice), mas os imaginários de superfície sobre a rede de vivências reificadas: o real é o efeito pirotécnico da hegemonia. Mas a superfície, “entre nós”, pertence às oligarquias, e por ser oligarca se mantém espessamente realista e corporativa.

        Assim, “entre nós”, o real tem sido construído através de uma tópica que, entre o século XIX e o XX, veio se configurando como estilos realistas: o historiográfico, o jornalístico, o sociológico, o psicológico, o memorialístico são exemplos que, ao leitor, dão a sensação de dialogarem explicitamente com a existência, de vivenciarem espontaneamente o passado, o presente, o outro, o eu, o imediato, o social: sem desvendarem a si mesmos enquanto tópica, enquanto gênero, enquanto imaginação de apoio e ficção: o real que aparece é resultante de efeitos, de protocolos, de técnicas, de padrões, de viezes, de redes específicas de vida, de fórmulas jornalísticas e literárias, de efeitos historiográficos, de convenções artísticas, de ritmos e respirações, de ocultamentos e simulacros: as naturalizações, as universalizações e as generalizações se encarregam dos efeitos especiais no final: e o real parece surgir deslocado da escritura, desenvolvendo sua dança na vida, no imediato, solto das regras literárias, historiográficas e de classe que puseram ele para representar, camuflado nessa soltura as funções da encenação: nosso real dança num imaginário prisioneiro.

        Essa oligarquia realista da superfície (como todas as teorias miméticas) tem raízes profundas “entre nós”, mas seu aparecer acon-tece nas palavras, imagens, idéias, noções, crenças, ações; esse espírito oligarca escolhe nossos parceiros em nós e segrega com o olhar, a piada, o chiste, o muxoxo, os trejeitos; maltrata e mata e tortura “homossexuais”, “negros”, “índios”, “pobres”; abastece a percepção e ordena os materiais oníricos; essa oligarquia realista é o real das relações e se transforma em condicionador do produzido, do comentado e do que deve circular exigindo cada vez mais o mesmo, a confirmação de si mesmo, do seu entorno e do seu intorno. Suas matrizes são ditas “históricas”, mas sua vigência é presente e atuante, é imediata, a História não pode dar conta. Seu aparecer não se dá mais como antigamente: num processo de invaginação a oligarquia permanece como dimensão interpessoal, geradora, protetora e reprodutora de si mesma fora do tradicional “âmbito econômico-social”: outras formas do mesmo.

        Na oligarquia das letras (a que sempre escreveu o contrato da escrita e da leitura numa língua diferente da do “povo”, seja a Literatura brasileira, seja a Historiografia Nacional, seja qualquer outra manifestação discursiva) não há, explicitamente, um “governo de poucos”, personalizados, mas difuso estamento dominante, eficiente, grupos e indivíduos disseminados pelos mais diversos “canais culturais, estatais e econômicos” detendo o acesso e permitindo ele somente segundo regras estranhas ao pretenso fazer literário ou historiográfico, tendo esse aspecto apenas dimensão secundária. Se houver talento, inteligência, capacidade, melhor, mas sempre dentro do “espírito”, do modelo conhecido e respeitado, sempre fazendo parte da “patota”, da “igrejinha”, do “grupo”, dos “amigos”, da “instituição”: muito fora do arquivo e do depósito - nada: a Literatura brasileira é discurso escolhido, selecionado: pelos “processos do compadrio”, pelos “irmãos de letras”, pela “confraternidade literária”, como nomeava José de Alencar, ele próprio oligarca e oligarquizador.

        A Literatura brasileira garante sua identidade se reduplicando, reafirmando as relações oligárquicas, as realidades nacionais e fazendo elas aparecerem como “ficção”. Essa Literatura é patrimônio, capital utilizado para reduplicação de si mesmo e para todas as honras da posição. Sendo Literatura, é escritura para servidores e reprodução de servidores, confirmada por todo um processo educacional (“é uma continuação do exame de português”, como dizia lima barreto, outro louco para fazer parte) e por todas as condecorações, medalhas e fardões honorificos do panteão nacional.


        Os “produtores” da Literatura brasileira, os escrivães, dão continuidade ao conjunto lingüístico como quem passa e repassa dinheiro, uma mais valia simbólica, capital social antes que literário, sem entender, sem contestar, sem modificar o conteúdo dessa negociação continuada. Nesse tráfico não pode fazer parte o pensamento enquanto negatividade, superação de localismos superficiais ou compreensão das matrizes perversas do real. O escrivão (o trabalhador da escrita) é um escrevente inconsciente exigindo a inconsciência mercantil, filosófica, radical do seu leitor.


        Determinado conhecimento, experiência – é vetado, impedido de fluir, sendo substituído pelo conhecimento e experiências letradas de determinadas classes em precisos “momentos sociais”: não se transmite o fluxo integral, mas parcializado; não se faz explodir a consciência, mas o mesmo é renomeado. O pensamento advindo dessa lanternagem de segunda categoria deixa bem claro como a nação pensa, como vê, como desdobra a si mesma enquanto palavra e, com isso, podemos dispor de uma via privilegiada para saber como “o povo” produz, reproduz e faz circular suas moedas falsas, moedas que se crêem representação, suas mais ridículas e fascistas imagens como se fosse arte.


A Historigrafia, a Crítica Literária


        A matéria essencial da pesquisa historiográfica, é a linguagem: é uma espécie de conjugação de construção e desconstrução interpretativa de “materiais lingüísticos”: documentos em geral são sempre sistemas de linguagens: figuras, máscaras, peças, montagens, arquivos, astúcias, poderes e forças cristalizadas; interpretações, perspectivas, lócus, disfarces, máscaras, instituição: cicatrizes, chancelas, sinais, inscrições, regras im-postas que formam redes: o historiador cria redes pro-vindas de redes já organizadas: poder sobre poderes: força contra forças: a história é um dos principais eixos de apoio discursivo da ocidentalidade, a máquina tribal, sempre entrelaçado aos eixos cristão, científico, filosófico e jurídico: a História é o gerador e mantenedor disciplinar dessa discursividade maquiada como “temporalidade”: a História é o cão de guarda do tempo, uma das suas criações: sua missão não é desprezível nem sua marca invisível: seus poderes são muito maiores do que se imagina: assim como a Literatura, ela age numa dimensão gerativa, fundamental. Daí porque nem a História, ou uma Crítica Literária, ou mesmo uma Filosofia, podem “dar conta” do pretenço “fenómeno literário”. Quem pode dar conta da Literatura é a literatura. Mas a chamada “Literatura brasileira” pode ser objeto de estudo porque não passa de uma escritura falsa, ficando muito mais no ámbito dos documentos da ordem, que constroem o estado e mantêm ele funcionando com seus torpores, do que aquilo que realmente uma literatura poderia fazer, isto é, fazer fluir as forças, desestabilizar, desterritorializar, desmobilizar o estabelecido, criar uma “lingua menor” como um virus dentro de uma “lingua maior”. Isso a História ou uma Crítica Literária poderia fazer, se elas mesmas não fizessem parte das mesmas estratégias, dos mesmos dispositivos que procriam a Literatura brasileira. São partes das mesmas redes territorializadas, imobilizantes. Nada podem fazer a não ser reproduzir as reproduções.

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Palestra no II Encontro de História: Historiografia Brasileira - Problemas, Debates e Perspectivas.  Universidade Federal de Alagoas, Curso de História, 27 de outubro de 2010.

3 Comments:

At 6:44 PM, Blogger Palavras Cruzadas said...

Gostei da análise marxista, embora discorde da afirmação sobre Graciliano Ramos. A literatura brasileira está cada vez menos politizada e mais aburguesada, e continua sustentando estruturas de poder oligárquicas com sua falta de rebeldia.

 
At 11:04 AM, Anonymous Gerusa Leal said...

Reflexões que entontecem qualquer um que tente se aproximar da compreensão do que é que move alguém a querer se dizer escritor...

 
At 11:49 AM, Anonymous Anônimo said...

Por que os acadêmicos se retorcem tanto quando leem um texto como esse? Pobres mortais com medo de perder seu lugar na sociedade, sua posição de conforto.

 

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