domingo, janeiro 02, 2005

ORIGENS – há uma pergunta recorrente que é usada praticamente em todas as situações: “de onde você é?” esse “é” diria, ao ser aceito e respondido, posto em lugar e tempo, quem é o sujeito, o que pensa, o que faz, porque e como pensa e faz, porque fala assim dessa maneira, e age e sonha e escreve e planeja e trabalha e se relaciona assim.
esse “é” é mágico porque ele é o zoológico perfeito (ele põe no setor correto, na jaula certa, na placa definidora, na alimentação requerida, com os companheiros corretos, com os comportamentos de praxe); a taxonomia ideal (na legítima espécie, no verdadeiro gênero, na requerida ordem: sem mutações, sem vazios, sem indecisões, sem enquadramento, sem não-aceitações, sem revoluções radicais, sem não); o senso absoluto (aqui eu me ponho, aqui eu sou, aqui está minha diferença e a razão da minha diferença); na história verdadeira (isso me diz, esse processo me caracteriza, essa origem me satisfaz, essa tribo sou eu, esses irmãos me completam: somos iguais); na geografia adequada (sou deste lugar e esse lugar com essa gente e seus costumes sou eu: um fragmento disto: eu sou esse lugar mesmo longe dali: o lugar é uma marca: sou ferrado pelo lugar: o nascimento é a razão); na raça esperada (esta cor sou eu, a história dessa cor sou eu, as relações dessa cor sou eu: fora desta cor sou um estranho, um outro: essa cor me determina porque ela é natural ou, pelo menos, assim deve ser ou parecer); no sexo visível (aquilo que visto, o tom da minha voz, para onde e para quem olho, quais histórias e piadas conto, como uso o gênero na linguagem, como exerço parte do meu desejo, com quem me relaciono é índice do meu sexo); na língua apropriada (a maneira como falo ou escrevo diz o meu lugar: me põe numa classe, num estamento, numa casta, numa região, numa família ou num favela, numa estribaria ou numa universidade, entre miseráveis ou entre ricos, entre sábios ou ignorantes, entre migrantes ou cidadãos, entre os que podem ou entre os que não podem): tudo isso e algumas coisas mais é o “é”.
respondido o “é”, podemos compreender plenamente esse sujeito, esse que se apresenta, isso que fala. esse “é” é uma pergunta divina: com ele o sujeito, ou a coisa, se torna transparente, dado, acabado: não deixa dúvida.
alberto lins caldas

FIM DE ANO - a babaquice, a ignorância, o entorpecimento adoram "fogos de artifício", babam de satisfação, gozam nas explosões, pulam feito sapos no inverno quando reconhecem formas fugazes naquilo ali em cima: qualquer forma os excita e alegra. nenhum deles nunca se conteve diante de uma festinha ruidosa, só pode conceber uma festa como algo ruidoso, onde não se consegue ouvir ninguém e todos gritam numa sanha de cios em fogo, em plena esperança de reprodução, no batuque ensandecido dos que não conseguem aplacar o comichão dos rituais esperados. e o fim de ano é a convergência dessas formigas insatisfeitas em imensos cardumes ruidosos como se orgias metafísicas explodissem em suas carnes moles. quanto mais toneladas de pólvora explodem mais as antas vibram, urram, latem e se espojam na lama insatisfeita e na esperança sempre regrada. e "rompem o anus" com todas as satisfações dos duplos sentidos jamais satisfeitos com plenitude.
alberto lins caldas

sábado, janeiro 01, 2005

TUDO DIZER
um e-mail me pergunta sobre a palavra parrhesia [pan= tudo/rima= dizer, o que é dito, o “tudo dizer”: “falar sem obstáculos”, fala franca, simples, direta, a “livre palavra”; liberdade e franqueza que transcendem as normas e leva a um “mais além” dialógico; o enfrentamento, “fala não farisáica”, “orgulho da língua livre”, a “fala sem amarras” dos “homens livres”; no catecismo católico quer dizer “simplicidade sem rodeios”, “confiança filial”, “jovial segurança”, “audácia humilde”, “certeza de ser amado”, coragem, confiança; faz parte das múltiplas manifestações da graça: relação com deus e com os homens, antecipação da salvação como alegria e humor, discernimento e coragem (a parrhesia propriamente), os dons do espírito santo; “liberdade de tomar a palavra” ou seja, na “assembléia do povo”, falar francamente] e parresiata (aquele que considero o legítimo filósofo), aquele que diz tudo, o que tem a coragem da verdade, usados no meu texto “liberdade de expressão”, e eu respondo: a parrhesia era dimensão da coragem, daqueles que, por não serem senhores, diziam a verdade, se davam ao direito de tudo dizerem até mesmo com sua vida, com o risco da vida, que era a garantia da verdade, que jorrava do seu exemplo, das suas escolhas vitais: dizer a verdade era conseqüência da vida em busca da verdade. a crença na verdade e a busca pela verdade era o mesmo que a verdade, a verdade como uma garantia vital, uma crença feita com a vida, como sócrates. ele dizia, através de platão (“a república”), que a “parrhesia é a causa de minha impopularidade”, e vivia e morreu em conformidade com a parrhesia tornando ela a própria filosofia não somente como um dizer sobre o ser mais um dizer que tem a coragem de dizer, de se dizer ao dizer o mundo e os outros.
na minha primeira juventude, quando comecei a ler filosofia em busca das minhas buscas, encontrei como todo leitor os livros de platão e seu personagem principal. com sua vida e morte o sentido das buscas se resumiram e se consolidaram numa só, que viria a chamar literatura em seu sentido estrito e afiado. sócrates vivia conforme, seu dizer e sua vida eram com aquela forma onde uma supõe a outra, sem as contradicções tradicionais. a verdade e a vida estavam na vida como exemplo integral. o seu “quem sou?”, “ao que me conformo?”, “que estou aceitando?”, “sou cúmplice do que?”, “como me libertar mais ainda?”, “sou condescendente?”, “que devo fazer nessa cidade e com os costumes dessa cidade”, “dizendo isso serei amado ou ser amado é sem importância diante da verdade?”, “como libertar o outro das suas ilusões?”: crítica e autocrítica juntos, escolhas fundamentais. a verdade e o dizer a sua verdade sobre a corrente, apesar da corrente, arriscando a vida, a paz, os amigos e amores, a segurança e o respeito: a parrhesia exige isso, o risco em fazer a verdade se identificar com o risco vital: o parresiata é um toureiro e sua arte exige o risco de vida para ser exercida: sem o touro a tauromaquia seria somente uma dança.
a parrhesia continua a ser fundamento para qualquer teoria, qualquer dis-curso que deseje dizer o mundo ao mesmo tempo que aquele que diz, aquele que assume o dizer. e dizer a verdade é também dizer o falador e dizer todos em torno desse dizer e desse falador. a liberdade de expressão se torna cada vez mais uma espécie de “ultimo bastião” da liberdade social na onipresença da mercadoria. num mundo tal devemos e temos a obrigação ética de “interpelar” tudo e a todos sem amarras, sem medo das conseqüências, sobre o que fazem governos e o que dizem, o que permitem e o que proíbem, o que cercam e o que abrem, sobre o sentido de cada crença e cada palavra e cada ameaça travestida de “bons costumes”, interpelar a lei e os “senhores da lei”, interpelar os crentes e suas crenças, os “inocentes” e os “culpados”, as economias e as políticas (inquirir táticas e estratégias), interpelar o corpo e suas técnicas, as mídias e suas loucuras servis, interpelar as ações e as inações, as decisões, interpelar os saberes, as imagens, as experiências, o senso comum e as filosofias, o desejo e o gozo: somente assim posso começar a ser um “cidadão”: sem essa interpelação furiosa a cidadania é somente um apêndice dos poderes e do poder, daquilo que é exatamente contra a existência do cidadão e de toda possibilidade real de democracia (sem a parrhesia a própria lei é um simulacro): a parrhesia é “perguntar sobre a verdade”, é clamar por ela quando se encontra tão travestida de realidade, de natureza, de crenças, de poderes e de saberes que ela mesma e todos nós já não nos sabemos senão o que o mundo do formigueiro deseja que percebamos: a parrhesia é quebrar esse espelho cruel.
sem a parrhesia a sociedade não conquista a cidadania e a universidade sua existência. só há cidadania se há parrhesia e sem ela a universidade é somente “instituição de ensino”, estribaria da reprodução dos saberes técnicos para servir aos mecanismos alienantes do trabalho: lugar de reciclagem, de lixo reutilizável. daí porque a parrhesia é atingida tanto na cidade quanto na universidade: sua inexistência, o vazio que deixa, o combate constante a sua prerrogativas diz muito tanto da cidade quanto da universidade (diz muito deste horror maligno chamado brasil).
só uma sociedade sorrateiramente autoritária, que confunde lei e ordem com democracia; onde a mercadoria é intocável em sua forma de existência, pode ser contra a “liberdade de expressão” (considerada aqui aquela que vai além da permissão, além da lei, além do respeito, além do poder, além do costume e da individualidade intocável como “sujeito de contrato”). dizer contra a ordem, contra a norma, contra a forma porque essas são “palavras de ordem” militar, não pleno exercício de democracia ou liberdade. a grande razão do filósofo não é dizer o ser, não é lutar pela verdade (que muda o tempo inteiro ao sabor de todas as ondas), mas pelo dizer a verdade com a coragem e o risco da vida, a coragem de lutar pela liberdade de dizer a verdade.
alberto lins caldas