terça-feira, novembro 30, 2004

LIBERDADE DE EXPRESSÃO

tenho me engajado a vida inteira na luta e na defesa da liberdade. aqui pretendo falar daquela liberdade que deve ser completa, total, absoluta: a de pensar, falar, imaginar e escrever definitivamente tudo sem que nada impeça, nada proíba; nada censure, nada se interponha, nada reverta ou abale; nada torture ou aprisione. que tudo responda, mas que nada rasgue, queime, impossibilite, processe, violente, mude, refaça, esconda, ameace.
e pensar isso e assim nesse país infeliz (não que haja países felizes) que carrega o fascismo como corpo e alma, como história e memória, como cotidiano e crença, é pedir demais.
uma das loucuras aceitas como normalidade é o “delito de opinião”, que permite processar os que escrevem, como se isso fosse a maior conquista do mundo. em nome de todos os bons conceitos, das boas idéias, do reto caminho todos renunciam a liberdade, justificam a censura em todas as suas sutis formas, o corte, o processo, a perseguição, a imposição. outra é a “apologia ao crime”, como se defender qualquer forma de crime, de delito, de horror reproduzisse magicamente esse horror, como se fossem todos imbecis que não podem nem conseguem discernir nada. e quem “omite opinião” é processado, preso e perseguido, e isso não é visto como o maior dos horrores, uma brutalidade.
nada, absolutamente nada do que é ou pode ou já foi escrito é mais abominável que as ações contra o escrito, o pensado, o desejado, o dito, o visto. tudo, absolutamente tudo, pode e deve ser dito, ser escrito, ser transformado em imagem, em som, em algo manipulável. nossa função é defender essa forma absoluta de liberdade e a sua também absoluta resposta e lutar contra o abominável que foi escrito, pensado, falado, filmado, mas jamais proibir. a luta se faz entre as escritas, entre falas sem proibir nenhuma delas e possibilitando a todas elas a igualdade de condições e de divulgação.
defender, propagar, expor todas as formas de exploração como se fizesse o bem, os apartáides, todos os nazismos, todas as formas de terrorismo, a pedofilia, a proibição de livros e idéias, as chacinas, os massacres, as perseguições, as torturas, as humilhações, as intervenções, as desproteções, as dormências, os conformismos, os genocídios, as repressão, o terror, os racismos, as homofobias, os machismos: - são absolutamente detestáveis, ridículas e monstruosas, mas devem ter o direito de serem ditos. como ações e palavras não são iguais, devem ser combatidas enquanto idéias e enquanto ações por poderes e forças diferentes. palavras contra palavras, ações contra ações. não se pune um pedófilo por ser pedófilo em idéias, em propagar a pedofilia, mas por ser pedófilo, por praticar de alguma maneira a pedofilia: numa dimensão ele deve ser absolutamente livre, na outra a lei cuida dele, a “comunidade” põe sua existência em cheque. que suas idéias são monstruosas ou não, a decisão cabe ao leitor, ao ouvinte, ao telespectador, ao cidadão, não a lei ou ao estado. ou o monstro seremos nós os que destruímos suas palavras e seu direito inalienável de dizer. por eles serem monstros não serei também censurando por aquilo que me faz diferente deles e eticamente capaz de lutar contra eles. luto contra eles, e devemos lutar sempre contra eles, mas devemos também e com o mesmo ardor defender seu direito de dizer e o pleno direito dos “leitores” discernirem, escolherem, usando sua vida e sua consciência plenamente, sem que algo externo diga o que deve ouvir ou não ouvir, ler ou não ler, ver ou não ver, escolher ou não escolher: devo ser livre para escolher ou não o abominável, sem que ele seja retirado violentamente dos meus sentidos, do meu corpo, da minha consciência, da minha convivência como se fossemos “débeis mentais”, “escravos” ou “crianças”: eu devo escolher, eu posso escolher, eu luto para escolher, eu sou escolha. não pode ser a polícia, o exército, a tradição, o mercado, a mídia, os intelectuais, o partido, o bom gosto, o bom tom, a justiça, o estado, o síndico, o sacerdote, o prefeito, o censor, o professor, o pai: precisamos aprender a conviver com a diferença e com a liberdade que essa diferença exige. a tolerância absoluta é ao “escrito” (ficção de convicção), jamais ao intolerável que, se exercendo, destrói essa liberdade e outras que são essenciais.
tudo dizer, tudo escrever, tudo ouvir, tudo ver, tudo escrever, tudo ouvir, tudo pensar tem como correlato a luta obsessiva contra as múltiplas barbáries que transformam tudo em mercadoria, em cinzas ou numa perversa violência sem fim. nada pode ser íntegro, intocável; nada deve sair ileso; nada é sagrado, nada é puro; nenhuma idéia, nenhum nome, nenhuma relação, nenhuma crença, nenhuma noção, nenhum deus, nenhuma gramática, nenhum costume, nenhum corpo, nenhuma cor, nenhuma memória, nenhum desejo, nada pode escapar ao ridículo, à crítica, ao escracho, ao escárnio, a dissolução, ao direito de ser exposto, comparado, diminuído, posto na sua devida estatura.
o que não resiste, não se agüenta, o que chama a polícia, a justiça, os amigos, os capangas, o exército é porque não vale a pena. se valesse a pena responderia a altura, lutaria com as mesmas armas, sem impor sua evidência de poder sem contestação, sua evidência monstruosa. como clama os poderes se esvazia de valor, de verdade, comungando com tudo aquilo que impõe sombras, violência e mercadoria como horizonte único.
a liberdade de expressão é o espírito vivo da palavra, do diálogo, da linguagem, da comunicação, da possibilidade viva de convivência e superação, mas não quer dizer aceitação, aprovação, chancela de tudo. é exatamente por viver a diferença que posso e devo aceitar plenamente a “apologia ao crime” e lutar veementemente contra o crime, que não foi criado nem se difunde pela “apologia”: punir a "apologia ao crime" é maior e mais danoso que qualquer crime: é o crime fundamental.
a liberdade de expressão devolve ou recria na linguagem sua dimensão humana, seu poder poético, sua missão política e revigora ela enquanto aquilo que gera e mantém o próprio real. não é a toa que no brasil a palavra sempre teve donos, sempre foi vigiada, sempre fez parte de sistemas de permissão e proibição, sempre foi propriedade privada, sempre foi fazenda e fábrica, sempre se colou à moral, à imagem, aos bons costumes, à pessoa: sem a garantia da palavra, sem a palavra garantida e protegida, grande parte das crenças estúpidas e fascistas dos brasileiros se desmoraliza e sua situação de dependência aparece.
entre os brasileiros a palavra deve, precisa inapelavelmente ser tutelada, protegida, abrigada, brindada; o indivíduo não pode estar só diante da tempestade do dizer: é preciso chamar o rei, a lei, todas as formas de poder para proteger ele da parrhesia dos trágicos cínicos, a liberdade de linguagem, a liberdade de falar francamente a sua verdade sem mediações permitidoras ou censoras. o dizer numa dimensão ética plena e, nessa dimensão, ser defendida não somente pelos indivíduos, mas pela própria polis enquanto condição democrática de sua existência.
essa palavra tutelada dos brasileiros torna eles eternamente infantis, recorrendo sempre ao papai quando sua imagem é atingida, quando sua vida é exposta, quando sua moral é danificada: são incapazes de dizer de volta e na medida, incapazes de rejeitar a palavra sem o apoio do rei ou da lei: são castrados ao castrarem com a lei e com o rei. ao não enfrentarem as tempestades das palavras além de se tornarem fracos, fortalecem as tempestades viciadas, os nazismos e todas as formas monstruosas das palavras. ao buscarem a verdade com a força se enfraquecem e a verdade e o direito somem. todos são "senhores de engenho", intocáveis em sua imagem, sua moral e história: o senhor ainda está colado nas costas do brasileiro até quando ele pensa "defender os seus direitos".

Alberto Lins Caldas

domingo, novembro 28, 2004

FAMÍLIA – por causa de um e-mails não somente remendando informações erradas sobre um “ramo da minha família” (http://www.unir.br/~primeira/artigo140.html), os guimarães peixoto, coisa que muito prazer me deu, pois retirei de vez tanto o imbecil do bilac quanto a velhusca coralina que eram peso desnecessário, mas me censurando por tratar descortesmente a “família”, me fez pensar em como para os brasileiros essa coisa estúpida de família faz sentido na medida profunda da coisa e não somente como realidade suportável por falta de opção, por costume, por enfado. e a importância fundamental dessa coisa tribal, grupal, mítica, grosseira e gosmenta para as razões da vida dos brasileiros. não é a toa que grande parte das teorizações sobre o brasil levam em conta esse nazismo íntimo e circunscrito que reproduz e projeta grande parte dos horrores do “mundo social” e suas ideologias asquerosas, mas para elogiar, mostrar e demonstrar seu papel fundamental, seja enquanto “casa-grande”, seja enquanto “mocambo”, seja enquanto “casa” (a rua é a casa), “lar”. o brasil e os brasileiros são inesgotáveis em sua capacidade fascista de tentar explicar o horror, dourar sua eterna situação infantil, adolescente e sua universalização tanto do mundo do senhozinho quanto dos trouxas e das dondocas de classe média.
Alberto Lins Caldas

segunda-feira, novembro 22, 2004

ARTIGO: CONTRA A LINGUA

(http://www.unir.br/~caldas/artigos/lingua.html)

para se compreender como e porque escrevo de certa maneira.

sexta-feira, novembro 19, 2004

ARTIGO: CONTRA O BRASIL

(
http://www.unir.br/~caldas/contra.html)

a origem deste blog.

MEMÓRIA - tudo nesse país é feito para que nada seja esquecido: esse é o país da memória: o país da vontade de permanência do senhor: não esquecem as contas, não esquecem a pobreza, não esquecem a violência, não esquecem os governos, não esquecem deus, não esquecem as religiões, não esquecem a história, não esquecem nosso-hino, não esquecem a modéstia de todo mundo, não esquecem futebol, não esquecem a rede globo, não esquecem os “famosos”, não esquecem nada, não esquecem de lembrar. é sintomático dizerem sempre que “este é um país sem memória”.
Alberto Lins Caldas

NOSSO-HINO - nosso-hino novamente.
Alberto Lins Caldas

CIDADES DO INTERIOR - as “cidades do interior” só não são mais ridículas em tudo por que são pequenas: para entender a extensão desta idéia seria preciso transformar uma delas em “reserva ambiental” e estudar a vida, o comportamento desta fauna grotesca, desta flora carnívora, imóvel e perniciosa.
Alberto Lins Caldas

O ESCRITOR BRASILEIRO - não conheço tipo mais asqueroso que o “escritor brasileiro” (pastiche destas vacas de presépio estrangeiras que vêm arrotar sandices em festivais, jantares e palestras). ouvir, por exemplo, nélida piñon, joão ubaldo, edla van steen, moacir scliar, ligia fagundes teles, carlos heitor cony, lia luft e todos os “jornalistas escritores”, é não compreender como se pode ser tão besta, tão empolado, tão mentiroso, tão integrado, tão digno da própria dignidade, tão “cafajeste”, tão ingênuo, tão funcionário público, tão trabalhador alienado, tão compatriota, tão vendido e, ao mesmo tempo, massa interesseira e vaidosa: nenhum deles desvenda, expõe, as trapaças da “Literatura brasileira”, muito menos o verde-amarelismo que move e faz eles aparecerem.
Alberto Lins Caldas

quinta-feira, novembro 18, 2004

SOBRE O QUERER PROCESSAR - por que me causa horror o “querer processar” de quase todo mundo? não é porque fui, estou sendo ou porque serei processado por questões intelectuais, culturais: isso, independente do resultado, sempre me deu muito orgulho e prazer: o ser processado é um dos índices de diferenciação. e preciso saber melhor também o porquê do orgulho: as duas coisas, o horror e o orgulho estão unidos.

quem pensa em processar, quem deseja o processo, quem processa é o centro do meu horror. é um tipo que aceita o estado, a lei, a ordem; que respeita deus, pai e mãe; faz parte da família, da igreja, do bairro, da cidade, do país, da gramática, do hino, da bandeira; tem um time de futebol, uma festa, um programa de televisão; gosta de corrida de carros, de ler jornais, de jogar; tem orgulho da “história do seu país”; é um tipo que jamais se sente absolutamente deslocado, desfiliado; é pai (mas não aceita: coloca a “culpa” na “esposa”, no “acaso” quando ele é que é quem buscou isso porque esse é seu programa secreto, que ele não consegue manipular), é marido, é cidadão, é trabalhador, é um “ser vivo”; é um tipo que é um “ser humano” e se orgulha disso; são emotivos, violentos com mulheres, com homossexuais, com negros: essa violência aparece no seu gosto por piadas; um tipo que recorre ao “coletivo”, ao “grupo”, ao poder ordenado das “massas”, do “povo”, do “direito”; é um tipo que acredita piamente que é brasileiro e que fala português, respeitando “quem fala certo”, rindo e estranhando de “quem fala errado”; um tipo que não tem autonomia intelectual: precisa de mentores, de gurus, de lideres, de chefes, de companheiros e de amigos; um tipo que não criou suas condições culturais porque “estuda”, se “esforça”, “aprende”; um tipo que acredita que é “macho” ou “fêmea” e se ressente muito, sofre feito um porco no matadouro, quando “é bicha” (coisa que procura esconder até de si mesmo); um tipo que acredita na natureza, nas energias, na matéria, na ciência e na magia; acredita no espírito imortal, em extraterrestres e mistérios; que não está acima dos clones: precisa dos clones para pôr a sua vontade em andamento, os seus “direitos” em exercício. não se resolve sozinho, não dá valor à sua independência, ao seu não, a sua violência, a sua vingança, ao seu desprezo, a sua liberdade; um tipo que não se tornou alguém: não tem face, não tem nome, não tem vergonha: sua vida é cheia de ilusões que jamais conseguirá perceber como ilusões exatamente porque essas ilusões, para ele, são a realidade, os processos da vida, as formas da existência: seu programa social protege ele de toda negatividade, de toda dissolução.

sua linguagem, suas palavras, seus gestos, suas imagens são as do “povo”, das “massas”, das “classes médias”, do senso-comum; funciona por elaborados clichês, o que lhe dá a impressão de pensar, de modificar a si mesmo, aos outros e ao mundo. para isso usa palavras, imagens, frases, idéias e conceitos deslocados, aprendidos não para “atingir”, para negar, para dissolver, mas para se apresentar, para parecer, para não ser diminuído, para parecer mais.

faz parte do “lixo industrial” mas vivi e proclama o “lixo” com orgulho (será sempre um ressentido por ser “lixo industrial”, por viver nas periferias, nos subúrbios, nas fronteiras: não pode compreender jamais que não há “metrópoles” ou “colônias”, primeiros, segundos e terceiros mundos a não ser para os “lixos industriais”). cria seus filhotes conforme o “espírito social”, vetando ao infeliz qualquer possibilidade de se modificar, de não reproduzir o mesmo mundo medíocre do “papai” ou da “mamãe”, que vai batizar ele, que vai levar ele à “primeira comunhão” e a todos os passos religiosos mesmo dizendo que não acredita (não acreditar faz parte dos seus clichês, mas se borra todo da morte e reza escondido à “papai do céu” e à “santa virgem maria”). seguirá os mesmos passos das matrizes, seja “educado” nas mesmas escolas, respeitando os mestres, brincando de futebol ou com bonecas. acreditará sempre que sua vida foi feita para trabalhar e parir, para comer e se vestir, para acreditar em pátria, em deus e para consumir até estourar. acreditará sempre na justiça, no povo e que tem uma “alma imortal”. respeitará sempre o “senhor” em todas as suas formas reais e imaginárias. seu pensamento, suas ações, sua vida inteira é uma extensão perversa do “senhor”, em honra do “senhor”.

tudo isso é o estofo vivo, vivíssimo, do “querer processar”: sem todas essas crenças ele não sentiria com tanta premência seus direitos sendo desrespeitados: sem as crenças anteriores ele não se poria “contra ninguém”: a lei é sua instância superior de negociação: quando ele se torna impotente, quando falha suas micro-negociações (aquelas advindas da escravidão e dos agregados, dos pobres e de todas as formas de “lixo industrial”) ele recorre à justiça: ele é um “cidadão que merece respeito”, que “respeita e por isso quer respeito”.

as razões da existência da lei, do estado, do povo, sua condição de cidadão (a mesma de servo, de escravo, de trabalhador, de abelha e formiga), ele até “acha bonito”, mas para ele é “teoria”. ele aceita se misturar, ser “igual”, parecer, fazer aparecer, sobreaparecer sua condição de igual, de cidadão: enquanto não exalta sua condição de igual a todos não descansa, enquanto não reequilibra o desequilíbrio provocado pela “injustiça” ele não descansa, não fica quieto.

quando esse tipo é somente cidadão é profundamente compreensível sua imbecilidade dócil (assim determinado “mundo do capital” tem se produzido e reproduzido pelo menos nesses dois últimos séculos). o problema se dá quando ele se torna “aluno de uma universidade”, quando vai estudar nos “cursos de ciências humanas”. a pressuposição é a de que seja alguém que já tenha tomado um curso “contra o mundo”, que deseje quebrar os programas sociais com sua consciência e sua atuação. mas o que temos numa maioria esmagadora é exatamente o contrário: são tipos que atravessaram seu tempo de universidade para lutar contra ela, contra as possibilidades críticas e filosóficas, para se reafirmarem repondo o que já sabem e o que sabem seus iguais. fará tudo sempre para confirmar “o mesmo”, aquilo que ele já sabe, que todos sabem, que ele acredita, que todos acreditam. mas com uma diferença: a estupidez será acrescida por novas palavras, novas imagens, novos conceitos (todos esvaziados, todos sem profundidade, todos purificados e reencaminhados para o comum dos sensos, para a respeitabilidade). e o jegue, com um “título acadêmico”, ganhará um sobrerespeito (todos a sua volta respeitam ele), um lugar de destaque entre os demais jegues: dele provém a “confirmação científica”, “acadêmica”, “filosófica”, de toda tolice, de todo mistério, de todo segredo, de todas as microcrenças: ele acreditando em quase tudo confirma, reafirma num “patamar superior” (linguagem unidimensional) todas as sandices comunitárias, todas as covardias e todos os aleijões. por isso não consegue realmente se pôr em diálogo e nem se expor: ele só consegue se ouvir, mas diz que é o outro que não consegue ouvir ele: como o outro estando em processo de diálogo está levando ele para onde ele não se sente seguro, sua reação pode ser violenta ou se calar com profundo ressentimento do outro (ele jamais é culpado de nada, ou totalmente culpado de tudo: ou é adão antes da queda, ou é adão depois da queda: seu mundo é “ou-ou”). nunca estudou profundamente nada: fala por opinião, por achar que é assim, por uma orelha de livro, um artigo de jornal, uma conversa: jamais se aventurou no conhecimento, no desvendamento tenso de algo: é sempre um pinto no galinheiro se fazendo de galo: mas como nesse imenso galinheiro só tem pinto, nenhum galo lhe dará um belo sopapo, e quando encontra um galo ou a pata de um elefante pela frente, todos são contra o elefante e contra o galo, nunca contra o orgulho besta e vazio do pinto.

sua atuação será uma traição às possibilidades que possui, mas não põe em questão, não se dispõe a expor, a se indispor: não consegue ser fraco: precisa do estado, da polícia, do exército para reequilibrar sua imediata saída do conforto entre os iguais. e a possibilidade de se transformar num intelectual, num revolucionário, se tornando alguém, desaparece, é desperdiçada. sua vida será uma constante resistência aos intelectuais, aos que resistem, aos revolucionários, a toda mudança significativa. sua atuação, mesmo parecendo a de um “intelectual orgânico”, será anti-intelectual (ele e os iguais a ele sempre desconfiaram da teoria em seu sentido pleno de práxis e de poiesis: não podem mais ultrapassar o senso-comum e a vida intelectualmente vegetativa).

a posição política de “quem processa” também é um dado a mais na questão. mesmo sendo algo difundido pelos “labirintos sociais” (todas as estúpidas classes fazem parte da mesma mentalidade, do mesmo imaginário esvaziador e integrado), há tipos em suas determinadas posições de classe que estão mais “propensos a processar”: os “servidores” (“classes médias”) e as extensões imaginárias dos servidores. sua luta se faz sempre com o estado, acreditando no estado, tendo ao seu lado o estado e, ao estar contra, ele luta para que o estado “volte a estar ao seu lado”: o estado é sua família. sem o formigueiro ele definha, sem as crenças do formigueiro ele fica completamente perdido. sua posição política é sempre de reação, sempre fascista, sempre de retomada da ordem, da produção, da família e de tudo que recoloca a “sociedade de consumo” nos seus trilhos: seu lugar é o de defesa: só ataca para fazer voltar uma situação anterior: o processador é um inconformado com o irreversível da mudança, o radical do tempo. ele já foi “servo”, já foi “escravo”, já foi “povo”, já foi “massa”, hoje é cardume; já foi “feirante”, “comerciante”, “traficante”, “burguês”, “migrante” e “retirante”, hoje é cidadão; já foi “advogado”, “professor”, “funcionário público”, hoje é “classe média”; já foi o que matou o revolucionário, quem torturou os presos, quem dedou, delatou, indicou; já foi monarquista, republicano, liberal, fascista, da arena e do mdb, hoje é indiferente ou do “partido dos trabalhadores”: não foi jamais don quixote ou sancho pança: foi bentinho e capitu, helena e dona plácida.

esse tipo, que fizemos se desdobrar parcialmente aqui, é o homo juridicus, o “imbecil coletivo”, o homo obvius, o integrado, o violento elemento clonizado do fascismo atual. é o oposto tanto do antigo revolucionário e do intelectual quanto do terrorista e do querrilheiro. ele é a corporificação não somente dos imaginários do senso comum como a expressão animalizada do estado, do capital e da “sociedade” como um formigueiro “montado” para produzir e se reproduzir, mas aparece sempre com uma face, um nome, uma história: todos falsos. o homo juridicus é a confiança no estado, nas leis, na nação (são sempre subfilhotes de hitler, de mussolini e do pequeno e ridículo ditador vargas): ele “busca seus direitos” em todas as manifestações sociais: sua função é confirmar. isso é um dos complementos fundamentais da “sociedade de consumo”. sem o homo juridicus não pode existir o homo econômicos, o homo politicus, o homo fascistas e o homo estupidus (da sub-espécie babacas babacas). ele não sabe separar o eu-quero (a necessidade instaurada como natureza, não enquanto dimensão própria do capital), do eu-tenho-direito (esfera de defesa econômica, política e de classe): ao se “defender” auxilia e protege o “sistema”, consolida o senso-comum.

o processador não é um “fraco”, um “oprimido”, mas um negociador frustrado: sua vontade de escravo, de agregado, de funcionário público, de consumidor não foi satisfeita. o que ele busca é o equilíbrio, a ordem: as condições do estado e da produção: por isso ele fica tão convulsionado, tão indignado, tão melindrado, tão assanhado, tão revoltado e “doente”: ele só é, só se torna, só pretende, só alcança a existência, o sentido, a forma, o desejo e a alegria através do respeito, da imitação dessas “instâncias superiores”: ele é um filhote do capital, da “sociedade civil”, do estado e da “sociedade de consumo” (que não pode existir plenamente sem todos os direitos, contratos e funções): atingido, contestado, dissolvido, ameaçado seu mundo (pessoal e coletivo: economia e política) precisa voltar ao normal, retornar ao “ser natural”, à toca protetora do estado (quem protege ele quando ameaçado: o servo - agora cidadão - ainda acredita nos sacerdotes como intermediadores de um deus qualquer; nos guerreiros - milicos, policiais e o judiciário - como protetores da comunidade; e dos trabalhadores como aqueles que pagam com seu trabalho pela proteção e pela intermediação). pessoalmente ele não faz nada: sem a lei, sem o estado, sem o patrão, sem o senhor e suas sombras protetoras, ele não reinvidica, não diz não, não contradiz, não critica ou dissolve. o homo juridicus é o indivíduo apascentado, cozido dentro do homo economicus: ele não escreve sua própria história.

meu orgulho, uma das questões deste texto, advém de eu não querer, não fazer parte, não ser nada disso, estar sempre muito longe de tudo, contra tudo e por nada: e haver lutado sempre contra tudo isso e muito mais: o ser processado é para mim um dos índices dessa diferença, da vitória da diferença, a confirmação: e eu habito plenamente o não, a ausência, o não ser, a revolta, o não-lugar: estar ou fazer parte faz parte da luta, do ser contra, jamais uma integração não-dita ou inconsciente, jamais um compartilhar, um se integrar; o horror está em viver e conviver com esse universo castrador, centrífugo, unidimensional, cristão, homofóbico, racista, nazista, medíocre e verde-amarelo: por mais que faça, que lute, que desdiga, tudo permanece ao meu redor, querendo me sufocar, penetrar como um estuprador ensandecido deseja sua vítima, querendo que eu seja assim também, que comungue, que partilhe, que aceite, que confirme que faço parte, que proclame que necessariamente faço parte, que não posso não fazer parte, que feche os olhos, que respeite, que me torne igual e que processe os que atinjam minha “pobre alma desarmada”. e o horror e o orgulho não se separam, não desaparecem. eu adoro ser processado e, quem sabe, torturado ou assassinado. seria a glória! mas eu não mereço tanto!
Alberto Lins Caldas

segunda-feira, novembro 15, 2004

EXÉRCITO - o "exército brasileiro" continua da mesma maneira, perigoso como sempre, periculoso e violento, insidioso e reacionário. nessa última crise (caso herzog, ministro da defesa, etc) tudo isso apareceu com nova claridade, ou fez rememorar. é uma ameaça contante, uma espada sobre a cabeça, sempre uma possibilidade, um horizonte de dissolução das liberdades individuais democráticas e das poucas conquistas sociais. pensam todos que esse perigo se educou, que aprendeu seu lugar numa sociedade democrática, mas isso é um engano sem medida. o "exército brasileiro" é o mesmo de sempre.
Alberto Lins Caldas